segunda-feira, abril 03, 2006

“ (...) O único recurso que nos resta é olhar pela janela. Vemos pardais; vemos estorninhos; vemos algumas pombas e uma ou duas gralhas, todos ocupados com o que lhes diz respeito. Um procura uma minhoca, outro um caracol. Um voa para um ramo, outro dá uma corridinha pela turfa. É então a vez de um criado atravessar o pátio. Usa um avental de baeta verde e é provável que esteja envolvido em alguma intriga com uma das criadas, mas, dado não possuirmos provas nesse sentido, só podemos deixar as coisas tal qual elas estão. Espessas ou leves, as nuvens vão passando, alterando a cor da relva. O relógio de sol marca as horas através daquela forma misteriosa que o caracteriza. Mole, sem qualquer objectivo preciso, o espírito começa a formar uma ou duas perguntas a respeito desta vida. A vida canta, ou melhor, zumbe, como se fosse uma chaleira de água a ferver. Vida, vida, que és tu? Luz ou sombra, o avental da baeta do criado ou a sombra do estorninho projectada na relva?
Numa manhã estival, quando todos admiram a flor da ameixeira e a abelha, partamos então à sua descoberta. A assobiar ou a cantarolar baixinho, perguntemos ao estorninho (ave bastante mais sociável que a cotovia) que pensará ele quando vasculha no caixote do lixo, e, por entre os gavetos, encontra alguns fios de cabelo do ajudante do cozinheiro. Encostemo-nos ao portão da quinta e perguntemos o que é a vida. Vida, vida, vida!, canta a ave como se nos tivesse ouvido. É que ela sabe ao certo o que significa este hábito maçador de fazer perguntas a torto e a direito, quer dentro quer fora de casa, e de desfolhar malmequeres, o que acontece com frequência aos poetas quando não sabem o que dizer. «Então», pensa o pássaro, «perguntam-me o que é a vida; Vida, vida, vida!»
Depois, avancemos devagar pelo caminho que leva à charneca e alcancemos uma colina violeta. Atiremo-nos ao chão e sonhemos; vemos um gafanhoto transportar uma palhinha para casa. E ele diz-nos (se aos ruídos por si produzidos se pode dar nome tão sagrado e terno) que a vida é trabalho, ou pelo menos assim interpretamos os seus cri-cri sufocados pelo pó. As formigas e as abelhas concordam, mas, e se ficarmos aqui deitados o tempo suficiente para interrogarmos as borboletas nocturnas que esvoaçam por entre as pálidas campainhas, elas murmurar-vos-ão ao ouvido os mesmos disparates que ouvimos quando há tempestade e os fios dos telégrafos zumbem: «Riso! Riso!», exclamam as borboletas.
Depois de termos interrogado um homem, uma ave e alguns insectos – já que, e ao que consta, os peixes vivem em grutas verdes e solitárias e não ouvem nem falam (e talvez sejam eles os únicos a saber o que é a vida) – depois de os termos interrogado a todos sem nada aprender, tendo apenas arrefecido e envelhecido (pois não tínhamos nós desejado encontrar maneira de aprisionar num livro algo tão raro e consistente a que poderíamos chamar «o sentido da vida»?), vemo-nos obrigados a voltar atrás e a dizer ao leitor que espera há tanto tempo que lhe respondamos – enfim, que não sabemos.”

Virgínia Woolf, Orlando

16 Comments:

Blogger Sousa said...

Cheguei! Olá! De hoje em diante estarei vigilante... :-)

1Beijo
Luís

abril 03, 2006  
Blogger ana said...

eheh, welcome luis!

abril 03, 2006  
Anonymous Anónimo said...

O diálodo que mais me comoveu da Virgínia Woolf, no filme As Horas, foi quando ela decide voltar a Londres e o marido, com sucesso, a tenta impedir. Gera-se a discussão e Virginia tenta explicar-lhe que mesmo a pessoa doente tem liberdade para decidir como quer viver a sua vida, mesmo que contra as indicações médicas e dos entes queridos, pois que é isso que lhe confere a dignidade de ser humano...
Enfim, deixei-me comover e é para mim o ponto alto do filme.
Achas que consegues sacar?
A vida,,,,.

abril 03, 2006  
Blogger ana said...

esse diálogo é muito bom mesmo! se não me engano tá no livro "as horas". não és tu que o tens? se não tiveres, meu bem, ofereço-to já!

ias gostar deste livro tb.

abril 03, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Por acaso não sei onde anda esse livro não... Tenho de procurar, se calhar emprestei.

Gosto do novo fundo, só não se vê tão bem o que escreves, deves ter que escrever noutra cor.

Já viste o calor que se faz sentir?

abril 03, 2006  
Blogger ana vicente said...

e assim se prova mais uma vez como ela é a melhor escritora do mundo...

abril 03, 2006  
Blogger ana said...

caloraço! eu tou da mm cor que o blog, tenho que confessar a futilidade. eheh

tens que procurar lá o diálogo, e depois emprestas!

ana vicente, obrigada, mesmo com esta cor? :-b

abril 03, 2006  
Blogger ana said...

ps ana vicente, não conheço muitas escritoras, infelizmente. desta gosto muito, muito mais que da anais nin e do que da florbela e da sophia. mas ...

abril 03, 2006  
Anonymous Anónimo said...

mas o quê?

abril 03, 2006  
Blogger ana said...

eheh

conheço poucas por isso não posso dizer que esta seja a melhor do mundo, mas desconfio-

ah, espera, a duras tb é muito boa, mas mais acre.

abril 03, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Não estava preparada para esta mudança azulada...mas dá-me 2 segundos para respirar... falaste-me em verde e pimbas chego aqui e azulportodoolado!


* como gostei de ler o "orlando"

abril 03, 2006  
Blogger ana said...

ehehe, sandera, pois, sabes, descobri esta cor e pensei "olha, combina com o meu casaco" e, pimbas...

já recebi reclamações, por isso tão todos à vontade.

abril 03, 2006  
Anonymous Anónimo said...

por mim está aprovadíssimoooooooo!

abril 03, 2006  
Blogger jmnk said...

verde?!?

tere que me habituar... ;)

abril 03, 2006  
Blogger anarresti said...

Quanto ao excerto que citas, que é assombroso: o importante é essa capacidade de perguntar, de interpelar os seres, a vida em volta. E de não nos angustiarmos por não termos respostas. Seja essa a atitude. E ade sermos uma seta apontada para fora, a de estarmos virados para a vida e tudo tem mais sentido. Muito mais sentido do que qualquer eventual resposta que se vá encontrando pelo caminho. Quanto a escritoras e a quem será a maior, não faço questão de ter um ranking. Mas posso dizer que um dos livros mais maravilhosos que li é de uma mulher: "A Casa do Incesto", da já referida Nin. E a maior descoberta que fiz (em termos de autores) dos últimos tempos é novamente uma mulher - e portuguesa: Hélia Correia.

abril 04, 2006  
Blogger ana said...

sim, veluta, é isso que eu acho piada, tanta coisa e não há resposta. mas pelo caminho vais passeando pelo bosque e vais gostando do sítio onde estás "apontado para fora" como tu dizes

abril 04, 2006  

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